lista de compras: Será que no céu há blogoesfera?

17.8.05

Será que no céu há blogoesfera?

Este texto tem quatro anos. Mas como ontem foi uma daquelas noites em que adormeci a pensar em ti, hoje vim lê-lo. Ele aqui está.


Lembro-me muitas vezes dos gritos que davas quando estavas naquela cama e eu sem forças para te tirar de lá. Confortada sem te ver, a 300 quilómetros de distância, podia sonhar com o teu sorriso e com as nossas embirrações porque sempre gostaste mais do meu irmão do que de mim. Mas foi contigo que adormeci durante muitas noites e foi a mim que me contaste vezes sem fim a história da cegonha e da raposa. Ando há que tempos para tentar descobrir essa fábula porque já não a tenho bem de cor.
Adormecia sempre agarrada à tua mão, isso lembro-me bem. As tuas unhas às vezes arranhavam nos cantinhos, mas eram quentes e seguras. Adormecia sem medo dos ladrões. Só quando perdi o kispo branco com uma risca azul – que veio a aparecer mais tarde cheio de caruncho no balneário do ginásio lá da escola – é que nem a mão me sossegava. Levantava-me todas as noites para ver se o novo, o amarelo, que eu fora proibida de perder, estava no guarda-fatos. Nunca o perdi. Gostava muito dele e lembro-me que a minha professora de português que também morreu tinha um igual em cinzento. Gostava muito dela, mas já não sei qual era o seu nome.
As minhas rabujices maiores foste tu que as aturaste. Não fazia ideia até há bem pouco tempo que uma vez me puseste dentro do lava loiça para que eu tomasse o pequeno almoço. Já nessa altura eu era birrenta e fazia grandes fitas.
Depois mais tarde a adolescência quase deu cabo de nós. Perguntavas-me todos os dias pelas notas e pelos testes. Fazias todas as vontades ao meu irmão e a mim nada. Percebo que querias que eu crescesse sabendo fazer as coisas que achavas que as mulheres deviam fazer. Aos homens nada disso era pedido. Sabes bem que não te ouvi. Continuo uma desleixada e desarrumada, sou eu que levo sermões do homem que vive comigo para arrumar as roupas espalhadas e fazer a cama e lavar a loiça, passar a ferro de vez em quando, lavar a casa de banho, aspirar o chão. Estás a ver? Arranjei alguém que não me obriga a fazer essas coisas todas enquanto está sentado no sofá.
O teu era assim, não era? O avô Jaime. Nunca o conheci. Só tenho dele aquela cara simpática, olhos claros, da fotografia no cemitério onde ia muitas vezes contigo pôr flores. Tirávamos as velhas e depois lavávamos a tampa de mármore com a água que tínhamos deitado para um balde, cheio naquela torneira do cantinho, onde cheirava sempre a rosas e se sentia o fresco. Depois de lavado e posta a água nova colocávamos as flores. Curioso, não me lembro de rezares em frente à campa dele.
Muitas outras vezes fui sozinha. Gostava de ali estar, ia vê-lo. Mal entrava e olhava para as fileiras de gavetões sabia exactamente localizar a fotografia. Na fila de baixo e um pouco mais para a direita estava o meu tio-avô que eu também nunca cheguei a conhecer. Passeava no cemitério, saltava campas, e entretinha-me a olhar para as fotografias daquela gente que eu nunca tinha visto. As que me impressionavam mais eram aquelas cujas datas distavam tão pouco. 1970 – 1973. Fazia-me confusão, mas o cheiro dos pinheiros e dos arbustos, das flores frescas e o silêncio é que me encantavam. Acho que por vezes cantava.
Tu ficaste do outro lado do avô, mais em baixo. Ainda não fui lá ver se te mudaram, porque ainda não me esqueci do som do caixão a fechar naquela igreja fria onde eu me casei e onde tu estiveste morta. Ainda bem que te disse que gostava muito de ti antes de isso acontecer. Foi depois de me pedires um beijo. Não sei se te lembras.
Sempre pensei que nunca te ia dizer isso antes de morreres. Mas disse. Esses remorsos não guardo eu. Sabes que guardo outros. A minha vida sempre foi feita deles, aprendendo com alguns, repetindo por vezes os mesmos erros. Chorava muito.
Os primeiros remorsos de que me lembro – e isto acho que nunca te contei – foram causados pelo roubo de cinco pastilhas elásticas no mini-mercado que ficava perto da catequese. Roubei as cinco e quase deixei de dormir pelo que tinha feito. Decidi que tinha de arranjar uma solução e assim fiz. Não podia dizer ao senhor Isidoro que tinha roubado as pastilhas por isso juntei o dinheiro suficiente para comprar outras cinco. Paguei e a seguir fui, sorrateiramente, colocá-las de novo no lugar. E foi por isso que ele desconfiou que eu naquele dia o estava a roubar. Saí de lá disparada. Mas com a consciência tranquila.
Desde que não me desse com pessoas que roubavam tudo correria bem. Porque sempre tive a mania de querer agradar, mesmo que isso implicasse tomar atitudes que iam contra a minha consciência. Estúpido, não? O pior é que tendo noção disso continuo a fazê-lo. Sou muito pouco corajosa.
Nunca fui cantora nem actriz. E gostava de o ser. Quantas vezes me apanhaste em frente ao espelho da casa de banho, com o desodorizante a servir de microfone e a cantar? Só acho que nunca me viste com os Lusíadas na mão a declamar ao espelho do armário do quarto dos meus pais. Declamava a parte da história de Pedro e Inês. Era fascinante, mas lá está, já não me lembro dos versos.
Também foste tu que me disseste que eu tinha entrado para a faculdade. Estava a tomar banho e tu gritaste cá de baixo: entraste onde querias! Eu fiquei furiosa contigo porque queria ver com os meus próprios olhos. Vim-me embora para Lisboa e só te via de quinze em quinze dias. Chateava-me muitas vezes porque mal eu chegava tu perguntavas-me quando é que eu me ia embora. Isto depois das perguntas sobre as notas. Nessa altura não te ligava nada. Pouco falava contigo. Dei-te muito poucos carinhos, nem um milésimo daqueles que me deste a mim quando eu precisava deles.
Não sei porque é que de repente deixaste de querer viver. Porque é que ficaste tão infeliz. É verdade que nunca te perguntei. Até achei que era mais uma das tuas birras. Não fui capaz de te perguntar nada quando a minha mãe me contou que foi dar contigo com os pulsos cortados, isto depois de o nó da corda com que te querias enforcar se ter desmanchado. A minha memória não reteve por aí além estes factos. São como que uma história de outra pessoa que não tu.
Depois puseram-te no lar, naquela altura em que os comprimidos já te tinham tornado numa pessoa amorfa e aí sim sem sentido de viver. Cada vez que lá entrava tinha vómitos. Aquele cheiro era insuportável. Aos sábados de manhã tinha de ir ver-te, embora o meu desejo fosse esquecer-me de tudo. Fingir que tinhas ido numa viagem longa, ou que somente naquele fim-de-semana não estavas disponível para mim. Foste definhando tanto que tudo se tornou insuportável.
Devias ter casado outra vez. Devias ter aceite o pedido do tio de Várzea. Tinhas sido se calhar mais feliz, tinhas tido um motivo para viver. Se bem que ele já enterrou três mulheres, mas desde que tivesses morrido feliz por mim tudo bem. Eu sei que sentias que não te queriam lá em casa, que eras um empecilho. Achas que eles não gostavam de ti. Às vezes pensei em ir-te buscar, deixar de te dar os medicamentos. Trazer-te de novo à vida. Mas nunca tive coragem para isso.
Chorei muito no dia em que o meu irmão me telefonou a dizer que tinhas morrido. Apesar de te já ter perdido há muito, muito tempo. Às vezes, à noite, tento lembrar-me da história da cegonha e da raposa. Ainda choro por ti. Lembro-me do toque da tua mão antes de adormecer. Das vezes que fazias jardineira e arroz seco no forno com carne e chouriça. Nunca mais comi nenhum tão bom.
E ainda não acredito que nunca mais te vou ver. E sinto-me a ficar velha. E conto os anos que faltam para ter trinta anos - só faltam quatro - com a ansiedade e a angústia com que às vezes conto as poucas horas que faltam para acordar antes de adormecer. O que faz com que fique ainda mais desperta. É por isso que me custa tanto tomar decisões. Porque nunca sei se me vou arrepender mais tarde. Ou melhor, porque sei que grande parte das vezes me arrependo. Quanto mais não seja, arrependo-me de não ter decidido nada.

PS: Agora cá em casa temos outro Jaime, de olhos castanhos e cabelo aloirado, como o meu era quando tirámos aquela fotografia no terraço lá de casa. Daí de cima ao pé do teu Jaime, consegues ver o nosso cá de baixo?