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25.1.10

Está sempre frio e uma nuvem paira no ar, ainda que esteja sol em Lisboa, ali gela e há vento. Os moinhos não têm velas, e por isso não giram. Ouve-se o barulho dos carros que passam velozes na autoestrada sempre à vista. À mão. Um caminho, um acelerador, um bilhete de volta para o mundo que corre. Muito depressa. Como corre o cão, preso por roubar e assassinar galinhas, agarrado a uma corrente com tamanho suficiente para que exercite as patas, mas que não o deixa fugir.
Cheguei num dia sem luz. As botas a bater na calçada anunciavam-me sempre que passava. Ainda que não percebesse, todos me olhavam e faziam perguntas para as quais não encontravam respostas. Soube depois que repararam na cor do meu casaco e na maneira de eu andar. Depois, quando nos sentámos à mesa e fumámos cigarros. Quando jogámos matraquilhos e dissemos asneiras. Mas naquele primeiro dia era uma intrusa.
Sentei-me longe do semi-círculo que fizeram com as cadeiras. E quando ele começou a falar já o microfone estava desligado. Chama-se Ernesto. Tem 43 anos. Usa óculos e um dos olhos é baço, não sei se vê bem como o outro castanho escuro. Não tem a certeza que ainda vá a tempo. Mas soube esperar depois de nove anos na prisão. Soube que tinha de esperar mais, que tinha de ter mais tempo. Soube-o naquele dia em que saiu da prisão e os carros o assustavam. De sobressalto em sobressalto pela rua fora quis parar mais um pouco. Quis conhecer-se fora das grades. Quis saber falar com os outros sem pensar quem tinha a faca atrás das costas. Quis ter regras e cumprir horários. Quis aprender ofícios novos. Quis esperar antes de se fazer à estrada.
Contou-me isto tudo, o Ernesto, o ex-traficante, o ex-toxicodependente, o ex-presidiário. O Ernesto. Doce, paciente, sorriso sincero, um pouco tímido. Disse-me no fim da entrevista que ia reparando na minha cara enquanto ele falava. Que eu lhe transmitia segurança, que tinha um sorriso franco e que via em mim uma pessoa estável.
O Ernesto puxou de um cigarro enquanto eu apanhava um lenço de papel no bolso do casaco para limpar as lágrimas. Ele quer ter uma namorada. Eu queria muito dar-lhe um abraço.