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7.3.06

As causas dos coisos

Anda aí uma discussão afogueada sobre o destaque dado pela imprensa à história das duas mulheres que quiseram casar-se e não conseguiram. Tudo porque o director do jornal Público decidiu escrever e dizer por onde passou que a coisa era um escândalo. Um escândalo certos e determinados jornalistas fazerem jornalismo de causas - principalmente causas que ele, obviamente, não comunga - um escândalo ainda maior certos e determinados jornalistas terem escrito sobre um assunto acerca do qual, pasme-se, têm uma opinião.

Ora aqui está um bom tratado sobre o tema. Pena que a gaja não queira oficializar a coisa de ser primeira dama. O Sócrates e talvez o país, saíssem a ganhar.


As causas do jornalismo

Fernanda Câncio
fernanda.m.cancio@dn.pt

Alguns comentadores (re)descobriram, com escândalo, o terrífico poder do agendamento mediático. Um poder cuja particular perversidade lhes surge inversamente proporcional à sua identificação com as "agendas" em causa, evidentemente. Destes tácticos escândalos está, como é sabido, cheia a História. É agora a vez da "agenda LGBT (lésbica, gay, bissexual e transexual)" e das reacções que a crescente visibilidade das suas causas vão suscitando. A mais pungente vem do director do Público, que, no afã de denunciar o tenebroso conluio entre tais esconsos objectivos e o que apelida de "valores do jornalismo dominante", encontra no jornal Expresso (um famoso reduto da comunidade LGBT e outras modernices, como é sabido) e no DN exemplos da "montagem de uma agenda política" que, a seu ver, culminou na tentativa de casamento ("montada", claro) de duas mulheres, ocorrida a 1 de Fevereiro.

Que José Manuel Fernandes (JMF) tenha iniciado a sua corajosa denúncia não no jornal em cujo cabeçalho é referido como director mas numa obscura revista mensal, prosseguindo o seu valoroso intento em entrevista a O Independente, demonstra bem o poder de condicionamento da dita agenda - afinal, em que mundo vivemos quando alguém se sente coibido de opinar sobre um assunto no jornal que supostamente dirige?

Significativo também é que JMF tenha escolhido como exemplo da dita "montagem" aquilo que reputa de "mau jornalismo" do Expresso - uma manchete de Dezembro declarando a existência de um milhão de homossexuais em Portugal a partir de uma sondagem com óbvias debilidades - e o facto de vários jornalistas do DN terem assinado uma petição a favor da legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, ignorando o acaso, público e notório, de ter sido o jornal que aparentemente dirige o primeiro a dar amplo destaque (que chegou a foto que ocupava quase toda a capa, com as duas mulheres de mão dada) à tal tentativa de casamento que tinha, frisa, "todos os ingredientes para pôr um certo jornalismo a salivar" e cujo objectivo - inconfesso e secreto, claro - seria "obter larga cobertura mediática". Na citada entrevista a O Independente, porém, JMF explica-se: afinal, não se refere ao Público porque ali "o trabalho foi sempre bastante equilibrado". Ou seja, afinal o problema não estava no nível de salivação nem na extensão da cobertura dada ao caso. Não: o problema, explica JMF, é o jornalismo "assumidamente de causas". Isso, sim, faz-lhe "confusão". Mas ressalva: o problema não é um jornalista ter opinião, e expressá-la, sobre as coisas sobre as quais escreve. (Ele, por exemplo, lá adianta ser "contra o casamento homossexual nos termos radicais em que os militantes da causa o querem institucionalizar" - o radicalismo, bem entendido, de o fazer casamento como os outros).

O que confunde JMF é a "falta de transparência das petições" assinadas por jornalistas que assumem "sem pejo" as suas opiniões e escrevem sobre esses assuntos - e dá-me como exemplo. É uma tolice um bocadinho contraditória isto que diz JMF, mas percebe-se aonde ele quer chegar. Como não o vimos até agora afirmar que os jornalistas do DN, eu incluída, que assinaram a dita petição fazem mau jornalismo (qualificativo que não negou ao Expresso), só se pode concluir que para JMF o problema, afinal, está em haver jornalistas que assumem opiniões e causas que lhe fazem, por razões que só ele sabe, confusão e que, ainda por cima, começam a ter acolhimento no mainstream.

Em causa, afinal, estão as causas de JMF e as suas campanhas pessoais (e pessoalizadas) - e talvez o facto de não ter presente que entre as motivações mais nobres do jornalismo está, historicamente, a denúncia das injustiças e a luta por uma sociedade mais livre. Mas fica a sugestão: que ao lado dos textos de cada jornalista se afixe um rol dos seus vários interesses, tipo, além das petições assinadas, em quem votou, em quem vai votar, por que clube torce, que pseudónimos usa quando escreve sobre automóveis (o de JMF é José Almeida Tavares), em quantas manifestações contra Santana participou, em que organizações maoístas radicais militou na juventude e, já agora, que fobias o fazem sair do sério. A bem da transparência.