E também é assim, parte II
Para ver se a reputação do Luís Costa Ribas não fica afectada pelo facto de ele ter finalmente comido uma boa refeição, deixo aqui outro relato.Domingo, 4 de Setembro
Acordei às 06h15, dorido e mal descansado. Às 07h00 (hora de Lisboa) tenho o primeiro directo para a SIC Notícias. O jantar tinha sido barras de cereais, proteínas e água. O pequeno-almoço foi barras de cereais, proteínas, água e um refresco enlatado de cafeína.
Sinto-me pouco à vontade, tal como os restantes jornalistas.
Olhamo-nos por cima do ombro, a passar os toalhetes no tronco e a mudar de t-shirt junto ao carro, na rua, transformando rituais privados em relutantes espectáculos públicos.
Depois do directo fui para o centro de Nova Orleães, dei boleia ao Miguel (um colega do diário catalão "La Vanguardia"). Atravessamos o condado de Jefferson às cegas, não sabemos o que está inundado, arriscamos a ir pela rua abaixo, onde o nível da água é demasiado alto para o jipe, voltamos para trás e procuramos outra passagem, para a encontrarmos bloqueada por árvores derrubadas - e assim fomos circundando a inundação durante duas horas e meia.
Os bairros estão desertos, mesmo perto de Nova Orleães, apesar de aqui se ver ocasionalmente alguém na rua caminhando como se estivesse em transe ou como se fosse um zombie. No bairro mais pobre, percebe-se logo onde aconteceu a pilhagem: portas arrombadas, vidros partidos no chão, os restos dos saques espalhados pelos passeios e pelas ruas.
Já perto da baixa, no cruzamento das ruas "Jackson" e "Magazine", uma mulher foi "sepultada" no passeio, o corpo está rodeado de tijolos e coberto por um plástico branco, onde alguém escreveu "Aqui jaz Vera, que Deus se compadeça de nós". Em redor do Centro de Convenções há o que parecem ser toneladas de detritos e destroços deixados pelos refugiados, que parecem ter castigado mais o edifício do que o próprio furacão o fez. Lá dentro o cheiro das fezes, urina, e restos de comida podre ofereciam uma combinação nojenta.
Ali perto a polícia e soldados tinham o seu quartel-general. Xerifes a cavalo patrulham a cidade, "emprestados, como não podia deixar de ser, pelo Texas". O histórico "Bairro Francês" levou uma boa tareia. A maioria das ruas está seca, uma pequena parte continua submersa, mas o nível da água já não parece ser muito alto. Felizmente o bairro livrou-se da sorte que outras zonas vizinhas não tiveram, onde as águas subiram quinze metros.
Mas a lendária "Bourbon Street" nunca se deve ter sentido tão abandonada, a não ser nas manhãs de Ano Novo ou da Quarta-feira de Cinzas. Nova Orleães, a velha boémia, está estafada e ao abandono. À tarde levei mais de meia hora para ir atestar o carro e, após uma fila interminável na estação de serviço, julguei que os inconvenientes do dia tinham passado.
A reentrada na cidade durou mais de duas horas, devido a uma barreira policial que só deixava passar residentes de certos bairros e jornalistas. Assim torna-se muito difícil ser produtivo. Mais uma noite no carro. Ainda por cima choveu copiosamente e o barulho da água a bater no capot da viatura contribui para a insónia e, como se isso não chegasse, a SIC acordou-me à uma da manhã. A TSF logo a seguir. O pior de tudo é que mesmo em frente ao carro onde durmo, está o hotel Hilton a fazer pirraça - aparentemente intacto, mas fechado por não ter água e electricidade.