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23.4.06

Os muros de Gentileza


Junho de 2005.

«Onde se vêem aquelas 3 árvorezinhas plantadas, um canteiro verde numa encosta seca e maltratada, vivia um homem. Foi meu vizinho durante alguns meses.

Gostava de pensar nele como o Senhor Gentileza, de quem a Marisa Monte fala, um velho das ruas do Rio de Janeiro que escrevia frases debaixo de uma ponte. Um dia, «apagaram tudo, pintaram tudo de cinza, as palavras no muro, foram cobertas de tinta».

O meu vizinho Gentileza tinha longas barbas brancas, usava uma capa muito velha e tinha uma espécie de cajado. Abriu ali um buraco, onde dormia belas sestas, de cara descansada e corpo moído pelo tempo. Tinha uma lona por causa da chuva e alguns objectos de difícil identificação. Gentileza aparecia todas as tardes e ali pousava os seus pertences.

Até que um dia, Gentileza deixou de aparecer. Se calhar durante uns dias eu deixei de reparar. Agora já não tenho vizinho. Foi-se embora ou levaram-no, e deitaram-lhe abaixo a casa. Ficou um jardim perdido no meio da encosta em vez de um buraco com lixo, que podia ser lixo, mas era dele.

Da janela, agora, olho para as três arvorezinhas e penso onde andará Gentileza.... E fico a imaginar que este Senhor Gentileza, em vez de palavras, anda pela cidade a deixar árvores por onde passa...»

Abril de 2006.

Gentileza está sentado em frente à minha janela, junto das árvores que tinha plantado e ainda lá estão. Não muito maiores que há um ano, mas vivas.

Gentileza usa agora um robe aos quadrados pretos, brancos e cinzentos. Vejo que apesar da farta barba é careca. Está com o chapéu na mão, talvez porque faz calor e aquilo mais servia para afastar a chuva que o sol.

Ao seu lado tem um alguidar e nele está depositado um instrumento de madeira, parecido com uma colher de pau.

Está em obras. As três árvores encimam agora uma estrutura feita de terra e pedras, blocos estranhos, alguns degraus talvez, tudo colado com a mistura que estava dentro do alguidar. Pintou de branco.

E aqui da minha janela que agora até já é dupla, para melhor ouvir os sons da casa e menos os da rua onde ele mora, fica-me a dúvida.

Gentileza constrói as paredes de uma casa sempre aberta ou aprendeu finalmente que só se sobrevive erguendo muros?