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14.10.05

A Ilha


Havana, Cuba


Quando ela cá chegou esteve dias e dias sem sair de casa. Em Sintra, sob o nevoeiro e o tempo chuvoso que a deixavam com saudades das praias e das palmeiras, escutava enrolada a um canto as palavras que todos os dias dos seus quase quarenta anos de existência foi ouvindo. O capitalismo era um horror. As crianças morriam doentes se os pais fossem pobres, as crianças eram analfabetas se os pais fossem pobres. Não se podia andar na rua em segurança.

Mas ela veio. Por amor, penso eu, mas veio. Dias em casa. O medo da Europa. O medo da democracia. O medo do capitalismo.

Não trazia no bolso uma caderneta como aquela que tinha no seu país. A caderneta onde estava apontado o que poderiam comprar em cada mês do ano no supermercado. As crianças só tinham direito a leite até aos sete anos. Fora da caderneta, tudo tinha de ser adquirido no mercado paralelo, pago em dólares.

Casou lá. Alugara um vestido de noiva, e ele um fato a condizer com a ocasião. Como todos os casais, tiveram direito a um bolo, 15 carcaças, três packs de cerveja, três garrafas de rum e duas noites num hotel. Só casaram uma vez. Mas conheciam quem casasse todos os anos. Quanto mais não fosse vendiam a cerveja e o rum e sempre havia mais pão todos os dias.

Lembra-se bem do dia em que a Embaixada do Perú abriu as portas. Confirmou que o García Marquez estava lá, do lado de fora, a chamar traidoras às dez mil pessoas que passaram para além daquelas grades. Ainda assim ficou surpreendida quando lhe disse que desde que tinha sabido desse facto nunca mais tinha lido, comprado, oferecido ou sugerido um único livro do García Márquez a ninguém. Mas porquê? Porque ser amigo do Fidel é fácil, viver como ele manda é que não. Ela acenou com a cabeça e sorriu ao de leve.

Não lhe deseja a morte. Diz apenas que gostava que ele tivesse vivido estes últimos 20 anos, entre os 60 e os 80, como vivem todos os velhos em Cuba. A andar de bicicleta porque não conseguem enfiar-se nos transportes. A passar fome.

Um ano depois de ter saído de Cuba regressou. Ia lá passar três meses e então decidir o que fazer. Se ficar lá, se regressar. «Não durou um mês. Viemos logo embora.»

Às conversas sobre a emigração, sobre a Europa, sobre o capitalismo, ela fugia sempre. «Não podia dizer-lhes que as crianças eram felizes, iam à escola pública, que havia um sistema de saúde pública, que podíamos dizer o que nos apetecia. Não posso dar-lhes esse desgosto, porque não tenho forma de os tirar de lá. Por isso prefiro que continuem a pensar que é verdade tudo o que lhes contaram.»

Ela veio para cá e eles, lá, continuaram sem perceber bem porquê. O amor, deve ser o amor...

Ela mudou-se para Cascais e todos os dias sai de casa sem medo, respira fundo e sonha com a ilha onde apenas o sol e o mar são, de facto, para todos.