Carta de Amor a uma Barriga
Barriga informe, do tamanho do mundo, toma bem conta de ti. Sítio mágico, redondinho, a vida és tu. Cresce, não deixes o mundo à espera. Talvez eu ainda não saiba, mas daqui a pouco - antes de ti - não havia nada. Anda barriga, a única coisa que o sol queima é o desgosto, barriga. Não tenhas medo do mar, basta respeito. Não te salves, não percas tempo com isso e nunca compres uma mesa de café em que não possas descansar os sapatos.Se as tuas mãos forem brancas como as primeiras neves, poupa-lhes o negrume da espera. Trata de as oferecer por inteiro a quem vir em ti uma criança. Treina muito bem a memória, vais precisar de esquecer. Trata-me por tu. Curte música, gosta de coisas, abraça pessoas e anda com as costas direitas. Aprende a falar em silêncio, com o corpo.
Bem podes argumentar que se está bem no quentinho, o quanto à gente custa sair da cama pela manhã. Mas não me venhas dizer que os tempos estão maus. Lembra-te que todas as eras e todas as civilização se queixam de paraísos perdidos. Vão sempre dizer-te que dantes é que era, nem que vivas mil anos. Desconfia.
Não deixes que ninguém te trate como se fosse mais ou menos do que tu. Mais vale que te apaixones cedo pelos animais e que descubras depressa o mistério da natureza. Sabias que a alma dos cães é do tamanho das nossas? O universo ainda está todo por explicar, tens muito trabalho para fazer, anda. Ainda me vais explicar a teoria das cordas.
É que tu, barriga por enquanto lisa, ainda és tudo o que nós já não podemos ser. Toda tu és potência, possibilidade e hipótese. Se espirras constipas-nos. Toma o teu tempo, perde-te. Mas começa já a levantar cidades aí dentro. Mobila-te, vais precisar dos teus edifícios, dessa roupa interior. Principalmente no Inverno. Estuda meteorologia para perceberes que o mau tempo é uma coisa exterior. Imagina a chuva e bebe muita água.
Anda cá ver isto, barriga do coração, sê curiosa. Expande-te, descobre os limites das coisas, o instante em que deixam de ser o que são e começam a ser outras coisas. Interessa-te pelas conversas idiotas, interessa-te por tudo. Deslumbra-te, deixa-te enganar. Muda tudo e recomeça. Não deixes a melhor roupa para o dia seguinte, usa-a. Ousa, nunca se sabe.
Ninguém sabe o que é a vida, a não ser tu. Mas eu acho que a vida é um ponto de embraiagem gigante, impossível. As ciências deixaram outra vez de ser exactas, os principais mistérios continuam intactos. A gente precisa das crianças do futuro. A terra moral também é redonda. Levanta amarras, barriga!
Escolhe um Deus que não venha da culpa. Organiza as tuas forças e não deixes que as tuas defesas te ataquem. Joga muito à bola, prepara-te para as coisas. Cuida do teu sistema nervoso, treina a atenção. Aprende a nadar porque os náufragos precisam da carta de marinheiro. Inventa, tem cuidado com o infinito, mas não o leves a sério. Não nos leves a sério.
Pensa nas coisas e trata bem a tua mãe, que anda contigo ao colo, não faças peso. Quando entrares numa sala enche-a de luz. Se ainda levares as costas direitas vai ser mais fácil. Dá o peito, mas evita as balas. Todas as noites te lançarei feitiços ao umbigo, quando ainda não souberes o nome das coisas, apenas os sons, faz mais efeito. Farei promessas, hei-de pedir que gostes sempre de mim e que nunca me deixes. Não será a primeira vez, nem a última. Depois serás tu a encher-nos de magia. Vai valer a pena, barriga, manda-te ao mundo.
O tempo anda devagar, no início. Aproveita para deixar coisas feitas, por exemplo as línguas. Aprende a gostar de estudar, é bem melhor do que trabalhar. Considera a hipótese de rebentares na véspera de um feriado para teres noites de aniversário a vida toda. Havemos de te dar uma boa mesada para ofereceres flores às outras barrigas.
Mas, ó barriga, que sei eu? Tudo me parece também o contrário. Quero que cresças, hei-de querer que encolhas quando fores do meu tamanho. Não me ouças, barriga, anda só e depressa. Não quero que me salves, tens mais que fazer, mas faz de mim um homem e faz de ti um miúdo.
Luís Gouveia Monteiro, grávido do coração