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15.9.05

Coração de ferro

«Os médicos estão lá durante o tempo da ecografia, mas não estão lá nas noites de insónia, nas noites de pranto, nos dias de angústia, não limpam as lágrimas... e o pior é que nem sempre pensam nisso.»

Este último parágrafo que a Ana escreveu resulta de um drama dela e de um drama de uma amiga nossa. E com certeza e infelizmente de um drama de todos os dias para algumas pessoas.

Foi à custa de grandes avanços científicos que a morbilidade infantil diminuiu, que a mortalidade durante os partos se reduziu ao mínimo, que as possibilidades de escolha dos pais face à situação de saúde dos seus filhos aumentaram. Mas como em tudo na vida, há os prós e os contras.

Os prós são todos quando tudo corre bem. Quando nada de estranho ocorre numa ecografia, numa análise, num CTG...

Os contras são muitos quando se levanta a suspeita.

Há uma regra de ouro entre os médicos, creio: a de que, por mais exames que se façam aos fetos, nunca há a garantia de que tudo está bem. O que é, a meu ver, correctíssimo.

Mas depois há os exageros.

Há os exageros das ecografias de embarda, porque o médico tem lá a maquineta e cada vez que se vai à consulta espreita-se o bebé, mesmo que esse médico não seja nem de longe nem de perto especialista em ecografias. E o stress começa logo às seis ou sete semanas em vez de começar às doze, a altura em que deve ser feito o primeiro dos 3, sim 3, exames ecográficos recomendados.

Depois vêm os indicadores. INDICADORES. O nome, como se pode ler, indica tudo. Indica ser algo indicativo. Indica que pode ser um indício. Indica que pode haver indicação para se realizarem novos testes para mais indicadores. Mas é SÓ isto.

Um dos primeiros indicadores que se mede é a famosa translucência da nuca (ou medida da prega da nuca) que, caso tenha um valor anormal, INDICA que o bebé pode sofrer de uma qualquer alteração cromossomática. Mas o bebé também pode não ter nada.

Só que perante isto, as mulheres ficam à toa. Tanto podem calhar nas mãos de um médico que lhes diz, «tenha calma porque já vi bebés com translucências muito mais anormais e estava tudo bem», como podem apanhar outro que diz «com estes valores é quase certo que o bebé não seja saudável». E podem crer que entre um aborto por medo e o nascimento de uma criança normal vai um passo bem pequenino...

E logo a seguir o famoso rastreio bio-genético, que é opcional para umas grávidas e compulsório para outras. Eu pude escolher, uma amiga minha limitou-se a pagar. E o mais interessante de tudo é que este rastreio tem DEZ POR CENTO de fiabilidade. Sim, DEZ POR CENTO. Ou seja, em 100 por cento de positivos - que são enviados para uma amniocentese, um exame com risco de aborto - 90 por cento dão negativo.

E continuamos com o stress por aí fora.

Mas no caso desta nossa amiga o problema é outro. Ela está há dois meses e meio com a suspeita de que o bebé tem uma malformação cardíaca. A médica viu algo estranho no coração do bebé às 12 semanas. Mandou fazer um ecocardiograma e o médico, contrariado, lá fez. Contrariado porque habitualmente nada se faz a este nível antes das 22 semanas, PORQUE NADA SE VÊ.

E ela, agora com 22 semanas, continua na mesma. NADA SE VÊ. Ou melhor, uns vêem qualquer coisa, outros não vêem nada.

E ela, com a barriga a crescer, que já sente o bebé, que já sabe que é um rapaz, anda há semanas, ecografia após ecografia, manhãs inteiras em hospitais, está tudo bem, afinal não está, não se vê bem, tem de repetir, não sabe o que pensar. Não sabe o que sentir.

E a única coisa com que ela podia contribuir para o bem estar do bebé, que era viver uma gravidez com tranquilidade, foi-lhe retirada pelas máquinas e pelas sondas e pelas inúmeras opiniões de médicos que não lhe conseguem dizer nada. Mas que abriram a boca perante uma ligeira suspeita. Uma suspeita que não havia maneira de confirmar a tempo de decidir coisa alguma.

E por isso ela e ele, que eu acredito nascerá saudável e brincará com o meu filho e com os da Ana e com os outros todos que hão-de vir, vivem neste limbo, nesta luta, nesta ansiedade. A medicina tem coisas maravilhosas, mas a ciência sem bom senso e sem sentimentos às vezes de pouco serve. Ou melhor, às vezes, deixa-nos doentes.