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17.3.05


Foto de Alfredo Cunha

«Samuel»

As portas de vidro da entrada do prédio reflectiam-lhe a imagem quando digitava um código que fazia soar uma campaínha num qualquer hall de um daqueles apartamentos de Telheiras. Olhava-se de certeza no vidro quando me ouviu perguntar:
- Quem é?
- É o Samuel...
E parou. Disse-me o nome e calou-se por uns instantes. Sabia que nunca o reconheceria, nunca nos havíamos falado antes.
- Samuel?
Só depois falou como os outros, os «profissionais do pedir». Deu corda às palavras e muito depressa disse:
- Estamos sem casa, precisamos de comida, de roupa, de qualquer coisa que nos possa arranjar.
- Está bem, desço já - respondi com voz seca, pouco antes de me dirigir à despensa com um saco de plástico para lá enfiar um litro de leite e um quilo de arroz. Desci no elevador, saco na mão, e vi-o pela primeira vez por entre os vidros das portas do prédio.
Era quase da minha altura, apesar de ter só onze anos. A cara rechonchuda, como a de um bebé de quatro, a pele cor de galão, os olhos escuros, cabelo curto. As mãos vazias nos bolsos de umas calças bejes, uma camisa branca. Olhou-me olhos nos olhos. E eu, com a minha veia inquisidora, perguntei-lhe logo tudo:
- E os teus pais?
- E porque é que os despejaram?
- E porque é que não têm trabalho?
- E a escola? Por que é que não estás na escola se é um dia de semana e ainda é cedo?

- A minha professora não me deixa. Diz que se eu não tiver material não vale a pena ir.

Baixou os olhos, fez um torcidinho com o pé, como se estivesse a chutar uma pedra e voltou a olhar-me.
O Samuel não estava na escola porque não tinha material. Material escolar. Ele veio pedir leite, massa, pão, havia um bebé em casa, mas ele não tinha um caderno nem um lápis. E isso não pediu. Devia achar que era de mais.
- Só tenho uma esferográfica mas a professora diz que não serve
porque não dá para apagar quando erramos...

Ele a contar e eu com o saco na mão. O saco com o leite e o arroz.

- A professora diz que eu não posso ir à escola se não tiver material.

As mãos dele nos bolsos e eu a apertar o raio do saco.

- Mas ela não te arranja um caderno? Um lápis?

Ele abanava a cabeça. E por entre um baixar e subir de olhos, virou-se para mim e disse, do alto dos seus onze anos e cara redonda e pele de galão:

- Também, para quê que me serve ir à escola? É para as obras, não é?

É para as obras não é? Eu sou preto e pobre. É para as obras não é?
Larguei o saco, abri a porta de vidro, subi no elevador, entrei em casa, fui ao escritório e procurei o caderno mais bonito que lá tinha. Era cinzento, de capa dura, A4, cheio de folhas em branco. Peguei também em três canetas e dois lápis.
Bati a porta. Desci no elevador. Abri as portas de vidro e o Samuel lá estava, as mãos nos bolsos nas calças bejes. Olhou para mim, meio espantado.

- Toma. Podes ir trabalhar nas obras, mas promete-me que pelo menos vais tentar trabalhar lá como engenheiro.

O Samuel estendeu as mãos e pegou no caderno. Pô-lo debaixo do braço como qualquer outro rapaz da idade dele ainda com sonhos nas algibeiras.