lista de compras: maio 2009

14.5.09

Os pés na terra

Os pés arrastam-se sobre a terra fria, a chuva cai miúda. As ancas balançam e abre-se um sorriso ao ver-nos chegar. A pele pouco se enruga, é firme como as pernas que a sustentam. As mãos endurecidas mas meigas, as unhas sujas. O peito balança à medida que anda, o mesmo que alimentou as crias, bem junto ao coração que bate compassadamente.
Parada no meio da estrada, junto do muro de pedras que abanam mas nunca caem, sorri ao ver-nos chegar. Encosta-se ao cajado, ordena ao gado que entre nos currais. Convida para uma bucha.
A mesa está sempre posta, à espera que cheguemos. Senta-se numa das cabeceiras e olha para o homem grande que fica do lado oposto. Rei e rainha, pai e mãe.
Nascemos de dentro deles. Cinco primeiro, transformaram-se em oito, que deram depois mais oito, entretanto mais três, que fizeram nascer até agora outros dois.
Somos altos e fortes, ora morenos ora mais brancos, os pés grandes, os cabelos escuros outros já cinzentos, os olhos expressivos. Uns são mais parecidos com outros, sejam primas e primos, tios e netos, avós ou irmãos.
Semeamos, sachamos, colhemos, criamos, matamos, pomos na mesa. E sentamo-nos nela. Falamos alto, discutimos, dizemos piadas, e calamo-nos quando o Pai conta mais uma história com direito a moral no fim, ou quando a Mãe balbucia uma canção dos tempos em que o sol ditava o correr dos dias.
Quando nos queremos chamar gritamos muito alto os nossos nomes. Tia Luz e Tio António, Maria Alice, Mino, Luís, Rita, Alexandre, Jaime, Maria do Céu, Celso, Lena, David, Raquel, Carlo, Nicola, Zé, Ana, Cristina, Celso, Manel, Fátima, Ana Catarina, Daniela.
O som ecoa pelo tanque, pela mina, pelo ribeiro, pelo moinho de água, pelos campos semeados, pelos currais dos animais, pelo galinheiro, pela eira, vai até ao alambique e dá meia volta de regresso a casa. Sempre que nos chamarmos vamos ouvir os nossos nomes de volta. A terra que nos fez nascer não nos esquece. E é isto que significa ter uma família.

11.5.09

Estou a escrever isto ainda sem te ver deitada no teu quarto. Sem vida. Acho que deves estar no teu quarto. Ficas em casa, por agora. Depois vais para outro sítio, porque não te podemos deixar aí, para falarmos contigo, darmos-te um beijo na pele lisa e firme, ainda que com mais de noventa anos.
Nunca falámos muito, nunca foste mulher de grandes palavras, nem de beijos, nem de colos. Isso era com o avô. Tu eras a mulher de ferro lá de casa. Andavas descalça pela rua, fosse verão ou inverno, com os teus pés rijos e com joanetes na calçada fria. Tratavas dos animais, punhas as mãos em panelas a ferver e nunca te queimavas. Era com essas mãos que amassavas o pão, todas as semanas. Ensinaste-me a pôr-lhes o sinal da cruz antes de se meterem no grande forno de lenha.
Trazias sempre um lenço na cabeça e o cabelo apanhado. Um dia vi-te a penteá-lo. Estava solto, era cinzento e muito comprido. Penteavas-te com uma travessa que depois servia para o prender de novo.
Íamos juntas ao ribeiro lavar as tripas do porco acabado de matar. Dizias-me sempre para não mexer no lume, que fazia xixi na cama... Eu a brincar com o fogo e tu de volta dos tachos e das panelas de água quente, da tua sopa de feijão, da tua aletria sempre doce.
Semeávamos batatas, davas-me uma navalha para vindimar, abanavas a cabeça quando eu insistia para pisar o vinho. Não é coisa de mulheres, dizias tu.
Pariste os teus cinco filhos em casa. Três rapazes e duas raparigas. Todos puderam estudar. Pariste-os com valentia de certeza, com a mesma valentia com que todos os dias caminhavas pelo campo, escaldavas as mãos e não ligavas às urtigas que te passavam pelas pernas.
Eras uma mulher da terra, uma força da Natureza. Eras a minha avó. Uma luz.